10 de jul. de 2013

Shikantaza

Shikantaza: Apenas sentar-se

(Um ensinamento de Ryôtan Tokuda)

No seu Shôbôgenzô Bendôwa, mestre Dogen escreveu: “Segundo a tradição autêntica de nossa escola, esta lei búdica, transmitida diretamente, é suprema ao grau supremo. A partir do momento em que vocês consultem um amigo de bem, não há nenhuma necessidade de queimar incensos, de venerar [os Budas], de invocar [Amitâbha], de se arrepender ou ler os sutras. Basta vocês se sentarem e se despojarem de corpo e espírito” (Tradução de Bernard Faure, La vision immédiate, Éditions Le Mail).

Esta célebre passagem trata de shikantaza (“basta vocês se sentarem”) e de shinjin datsuraku (“e se despojarem de corpo e espírito”). O sentido deshikantaza é difícil de compreender. Taza: ta é um prefixo de ênfase e za é sentar-se, taza significa, pois, “sentar-se firmemente”. Em japonês, shikanpode ter dois sentidos. O primeiro, que corresponde ao seu uso corrente, significa “apenas”. O segundo, itasura em japonês, significa “tomar o maior cuidado”. Assim, shikantaza pode ser parafraseado como “colocar toda sua energia no sentar-se”.

Quando o mestre Dogen chegou na China, com vinte e três anos de idade, ele se absorveu inteiramente neste sentar-se. Ele se concentrou, dia e noite, cortando totalmente todas relações. Até perder todas as noções de dia e de noite. O Hôkyôki conta que o mestre Nyojô lhe disse naquele momento: “Sentando-se assim, dia e noite, logo você cheirará como um perfume”. Tal aceno significava que sua prática era como a de um sesshin constante.

Esta passagem do Bendôwa diz que nós não temos necessidade de cantar, arrepender-nos, prostrar-nos, ou de recitar o nome do Buda. Nos mosteiros Zen, utilizam-se tradicionalmente os shingi, as regras puras dos mosteiros. Elas remontam ao mestre Hyakujô que escreveu um Hyakujô shingi. Há também o Zennen shingi, “as regras dos mosteiros Zen”, o Eihei Shingi, “as regras do mestre Dogen” e o Keizan, “as regras do mestre Keizan”. Todas as regras preconizam quatro períodos de zazen e três cerimônias por dia. Dois zazen de manhã depois de se levantar, dois zazen ao fim da manhã, doiszazen antes do jantar e mais dois zazen antes de se deitar. Ao todo, oito zazen por dia. Como um sesshin perpétuo. Todos os dias, sem variar. Seja agora, seja daqui a dez anos, a vida em um mosteiro Zen não muda, nem mudará jamais. Um dia ali é por toda a eternidade. E cantam-se os sutras três vezes por dia. Apesar disto, diz-se que não há necessidade de se queimar incenso e que não há necessidade de recitarem-se os sutras. Como assim?

É verdade que, de um lado, deve-se “apenas sentar-se”. Especialmente durante os sesshin, os monges não vão ao hattô, a sala de cerimônias, e eles sentam-se, comem, dormem e recitam os sutras no mesmo lugar, apenas sobre um único tatami.

Entretanto, de outro lado, recitam-se os sutras e o mestre queima incenso. Como compreender? Isto significa que ao penetrar neste âmago pelo zazen, tudo se torna zazen. No Shôdôka de Yôka daishi há uma frase em torno da qual muitos se enganam. Esta frase diz: “Sentar-se é o zen; caminhar é o zen”. Alguns interpretam-na dizendo que toda atividade é o zazen em si e que não há necessidade de se sentar. De fato, a maior parte utilizam-na para não fazer mais zazen. Alguns até praticam as artes marciais e falam delas como se fossem o verdadeiro zazen. Mas eles ignoram seu verdadeiro sentido.

Não queimar incenso. No entanto, queimar incenso torna-se zazen. Depois do zazen da manhã, fazemos a cerimônia. Coloca-se a vareta no porta-incenso de uma maneira tal que os olhos da estátua de Buda, a ponta superior da vareta e nós mesmos estejamos na mesma linha. Se o porta-incenso estiver de lado, a linha se quebra e não é mais o zazen. Como está dito no Zazengi: o nariz deve estar no mesmo plano que o umbigo. Sobre o altar há dois vasos. A distância entre o Buda e cada um dos vasos deve ser igual de cada lado. Se não for, não é zazen. Como está dito no Zazengi: as orelhas devem estar no mesmo plano que os ombros, sem pender nem para um lado nem para o outro. Verticalmente ou horizontalmente, você está no centro do universo. Você é o universo e o universo é você. É precisamente este universo que se torna movimento. É o grande silêncio que se reencarna no seu corpo. A personificação deste silêncio é que chamo de reencarnação. Eu não falo da reencarnação como a vida depois da morte. Todo o mundo fala da reencarnação neste sentido. Mas, por favor, não fiquem repetindo sempre tais asneiras.

Há um koan que diz que o Buda Sâkyamuni e o Buda Maitreya são seus seguidores. A pergunta é: de quem eles são seguidores? Trata-se do darmakâya, nossa natureza original. Porque o Buda é um homem? Porque Deus se fez homem?

Há também esta famosa pergunta do mestre Dogen: “Se nossa natureza original é pura e perfeita, porque é preciso praticar?” Eu respondo a esta pergunta afirmando que é preciso suprimir o porquê e dizer: “Nossa natureza original é pura e, portanto, é preciso praticar”. É neste momento preciso que toda atividade torna-se a prática do zazen.

Em um de seus tratados, mestre Eckhart fala de um nobre que partiu e retornou ao seu país mais nobre do que antes. Trata-se de uma história bíblica. Mestre Eckhart assim a interpreta: originalmente, nossa natureza é pura e nobre, apesar disto é preciso que saiamos de nós mesmos e ultrapassemos nosso próprio eu. Como mestre Dogen disse:

“Estudar o caminho de Buda, é estudar a si mesmo. Estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo, é ser despertado por todas as existências. Ser despertado por todas as existências é despojar-se de seu próprio corpo e de seu próprio espírito, bem como do corpo e do espírito do outro”.

Para sairmos de nós mesmos é necessário dar um passo, apenas um passo. Pode-se compreender o dharma, mas não basta. Apenas um passo. Mas este único passo é muito longo. É “Partir para um país e retornar mais sábio que antes”. Diz-se que são necessários três mil kalpa para que um ser humano se torne um Buda. Um tempo astronômico!

Apesar disto, três mil kalpa se acabam com um único estalar de dedos. Quando se retorna à origem, instantaneamente, realiza-se este estado de Buda. E retorna-se mais nobre ainda. Há, pois, necessidade da prática e do despertar. E é esta prática que se torna o movimento.

Mestre Dogen disse: “Sem esperar o despertar, sem pesquisar o que é isto e simplesmente se sentar, tal é a via dos budas e patriarcas”. É zazen quem faz zazen, não vocês com suas idéias idiotas sobre o despertar.

Esta prática é a manifestação do que havia antes de três mil kalpa, bem antes que nosso tempo fosse divisado. Na postura do lótus, o pé esquerdo está à direita e o pé direito está à esquerda. Isto significa que, no momento do zazen, o tempo e a eternidade estão entrelaçados. O mesmo vale para o espaço: este lugar de zazen alcança os confins do universo.


Observem a suástica que é um dos símbolos budistas. Quando ela gira no sentido dos ponteiros de um relógio, ela simboliza a criação. A cruz representa o tempo e o espaço. O ponto central é o fundo, o ponto original anterior à divisão do tempo e do espaço, o ponto original sem nenhum sinal, sem movimento. O silêncio completo. E as quatros barras dextrógiras são a representação do movimento. Neste movimento, o tempo e o espaço não estão separados da origem. Os próprios sons são a voz da origem. Assim é o movimento de zazen que nos faz queimar o incenso, que nos faz confessar e que nos faz repetir o nome de Buda. Toda atividade se torna a prática de zazen. Este é também o sentido de shikantaza.

E agora, o que temos de fazer? Apenas zazen. Não apenas duas ou três vezes por semana. Como o mestre Dogen que, de uma vez por todas, largou seus livros para se dedicar a esta prática e quem, em dois ou três meses, realizou o despertar por shinjin datsuraku. Para largar o secundário e concentrar-se no essencial, a vida monástica é muito eficaz. Mas se se pode praticar no meio da vida social, esta prática torna-se mais forte que a da vida monástica. Mas isto não é fácil. E isto não quer dizer fazer zazen apenas uma ou duas vezes por semana.

Texto retirado do blog Um pouco de Zen.


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