Shikantaza: Apenas sentar-se
(Um ensinamento de Ryôtan Tokuda)
No seu Shôbôgenzô Bendôwa, mestre Dogen escreveu: “Segundo a
tradição autêntica de nossa escola, esta lei búdica, transmitida diretamente, é
suprema ao grau supremo. A partir do momento em que vocês consultem um amigo de
bem, não há nenhuma necessidade de queimar incensos, de venerar [os Budas], de
invocar [Amitâbha], de se arrepender ou ler os sutras. Basta vocês se sentarem
e se despojarem de corpo e espírito” (Tradução de Bernard Faure, La vision
immédiate, Éditions Le Mail).
Esta célebre passagem trata de shikantaza (“basta vocês se
sentarem”) e de shinjin datsuraku (“e se despojarem de corpo e espírito”). O
sentido deshikantaza é difícil de compreender. Taza: ta é um prefixo de ênfase
e za é sentar-se, taza significa, pois, “sentar-se firmemente”. Em japonês,
shikanpode ter dois sentidos. O primeiro, que corresponde ao seu uso corrente,
significa “apenas”. O segundo, itasura em japonês, significa “tomar o maior
cuidado”. Assim, shikantaza pode ser parafraseado como “colocar toda sua
energia no sentar-se”.
Quando o mestre Dogen chegou na China, com vinte e três anos
de idade, ele se absorveu inteiramente neste sentar-se. Ele se concentrou, dia
e noite, cortando totalmente todas relações. Até perder todas as noções de dia
e de noite. O Hôkyôki conta que o mestre Nyojô lhe disse naquele momento:
“Sentando-se assim, dia e noite, logo você cheirará como um perfume”. Tal aceno
significava que sua prática era como a de um sesshin constante.
Esta passagem do Bendôwa diz que nós não temos necessidade
de cantar, arrepender-nos, prostrar-nos, ou de recitar o nome do Buda. Nos
mosteiros Zen, utilizam-se tradicionalmente os shingi, as regras puras dos
mosteiros. Elas remontam ao mestre Hyakujô que escreveu um Hyakujô shingi. Há
também o Zennen shingi, “as regras dos mosteiros Zen”, o Eihei Shingi, “as
regras do mestre Dogen” e o Keizan, “as regras do mestre Keizan”. Todas as regras
preconizam quatro períodos de zazen e três cerimônias por dia. Dois zazen de
manhã depois de se levantar, dois zazen ao fim da manhã, doiszazen antes do
jantar e mais dois zazen antes de se deitar. Ao todo, oito zazen por dia. Como
um sesshin perpétuo. Todos os dias, sem variar. Seja agora, seja daqui a dez
anos, a vida em um mosteiro Zen não muda, nem mudará jamais. Um dia ali é por
toda a eternidade. E cantam-se os sutras três vezes por dia. Apesar disto,
diz-se que não há necessidade de se queimar incenso e que não há necessidade de
recitarem-se os sutras. Como assim?
É verdade que, de um lado, deve-se “apenas sentar-se”.
Especialmente durante os sesshin, os monges não vão ao hattô, a sala de
cerimônias, e eles sentam-se, comem, dormem e recitam os sutras no mesmo lugar,
apenas sobre um único tatami.
Entretanto, de outro lado, recitam-se os sutras e o mestre
queima incenso. Como compreender? Isto significa que ao penetrar neste âmago
pelo zazen, tudo se torna zazen. No Shôdôka de Yôka daishi há uma frase em
torno da qual muitos se enganam. Esta frase diz: “Sentar-se é o zen; caminhar é
o zen”. Alguns interpretam-na dizendo que toda atividade é o zazen em si e que
não há necessidade de se sentar. De fato, a maior parte utilizam-na para não
fazer mais zazen. Alguns até praticam as artes marciais e falam delas como se
fossem o verdadeiro zazen. Mas eles ignoram seu verdadeiro sentido.
Não queimar incenso. No entanto, queimar incenso torna-se
zazen. Depois do zazen da manhã, fazemos a cerimônia. Coloca-se a vareta no
porta-incenso de uma maneira tal que os olhos da estátua de Buda, a ponta
superior da vareta e nós mesmos estejamos na mesma linha. Se o porta-incenso
estiver de lado, a linha se quebra e não é mais o zazen. Como está dito no
Zazengi: o nariz deve estar no mesmo plano que o umbigo. Sobre o altar há dois
vasos. A distância entre o Buda e cada um dos vasos deve ser igual de cada
lado. Se não for, não é zazen. Como está dito no Zazengi: as orelhas devem
estar no mesmo plano que os ombros, sem pender nem para um lado nem para o
outro. Verticalmente ou horizontalmente, você está no centro do universo. Você
é o universo e o universo é você. É precisamente este universo que se torna
movimento. É o grande silêncio que se reencarna no seu corpo. A personificação
deste silêncio é que chamo de reencarnação. Eu não falo da reencarnação como a
vida depois da morte. Todo o mundo fala da reencarnação neste sentido. Mas, por
favor, não fiquem repetindo sempre tais asneiras.
Há um koan que diz que o Buda Sâkyamuni e o Buda Maitreya
são seus seguidores. A pergunta é: de quem eles são seguidores? Trata-se do
darmakâya, nossa natureza original. Porque o Buda é um homem? Porque Deus se
fez homem?
Há também esta famosa pergunta do mestre Dogen: “Se nossa
natureza original é pura e perfeita, porque é preciso praticar?” Eu respondo a
esta pergunta afirmando que é preciso suprimir o porquê e dizer: “Nossa
natureza original é pura e, portanto, é preciso praticar”. É neste momento
preciso que toda atividade torna-se a prática do zazen.
Em um de seus tratados, mestre Eckhart fala de um nobre que
partiu e retornou ao seu país mais nobre do que antes. Trata-se de uma história
bíblica. Mestre Eckhart assim a interpreta: originalmente, nossa natureza é
pura e nobre, apesar disto é preciso que saiamos de nós mesmos e ultrapassemos
nosso próprio eu. Como mestre Dogen disse:
“Estudar o caminho de Buda, é estudar a si mesmo. Estudar a
si mesmo é esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo, é ser despertado
por todas as existências. Ser despertado por todas as existências é despojar-se
de seu próprio corpo e de seu próprio espírito, bem como do corpo e do espírito
do outro”.
Para sairmos de nós mesmos é necessário dar um passo, apenas
um passo. Pode-se compreender o dharma, mas não basta. Apenas um passo. Mas
este único passo é muito longo. É “Partir para um país e retornar mais sábio
que antes”. Diz-se que são necessários três mil kalpa para que um ser humano se
torne um Buda. Um tempo astronômico!
Apesar disto, três mil kalpa se acabam com um único estalar
de dedos. Quando se retorna à origem, instantaneamente, realiza-se este estado
de Buda. E retorna-se mais nobre ainda. Há, pois, necessidade da prática e do
despertar. E é esta prática que se torna o movimento.
Mestre Dogen disse: “Sem esperar o despertar, sem pesquisar
o que é isto e simplesmente se sentar, tal é a via dos budas e patriarcas”. É
zazen quem faz zazen, não vocês com suas idéias idiotas sobre o despertar.
Esta prática é a manifestação do que havia antes de três mil
kalpa, bem antes que nosso tempo fosse divisado. Na postura do lótus, o pé
esquerdo está à direita e o pé direito está à esquerda. Isto significa que, no
momento do zazen, o tempo e a eternidade estão entrelaçados. O mesmo vale para
o espaço: este lugar de zazen alcança os confins do universo.
Observem a suástica que é um dos símbolos budistas. Quando
ela gira no sentido dos ponteiros de um relógio, ela simboliza a criação. A
cruz representa o tempo e o espaço. O ponto central é o fundo, o ponto original
anterior à divisão do tempo e do espaço, o ponto original sem nenhum sinal, sem
movimento. O silêncio completo. E as quatros barras dextrógiras são a
representação do movimento. Neste movimento, o tempo e o espaço não estão
separados da origem. Os próprios sons são a voz da origem. Assim é o movimento
de zazen que nos faz queimar o incenso, que nos faz confessar e que nos faz
repetir o nome de Buda. Toda atividade se torna a prática de zazen. Este é
também o sentido de shikantaza.
E agora, o que temos de fazer? Apenas zazen. Não apenas duas
ou três vezes por semana. Como o mestre Dogen que, de uma vez por todas, largou
seus livros para se dedicar a esta prática e quem, em dois ou três meses,
realizou o despertar por shinjin datsuraku. Para largar o secundário e
concentrar-se no essencial, a vida monástica é muito eficaz. Mas se se pode
praticar no meio da vida social, esta prática torna-se mais forte que a da vida
monástica. Mas isto não é fácil. E isto não quer dizer fazer zazen apenas uma
ou duas vezes por semana.
Texto retirado do blog Um pouco de Zen.
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